quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A Revelação




Aquele não era um dia qualquer, era o dia em que ela tomaria uma decisão! Ah, aquele era o dia em que tudo ia mudar, seus medos ficariam de lado, sua ira, sua fúria com o mundo e com sua própria apatia iam dar lugar ação. Finalmente, naquela tarde de um sol escaldante que não lhe impedia mais de pensar ela ia se libertar, se libertar daquilo que fazia muito lhe doía a alma, lhe amaldiçoava a vida e impedia de ser feliz.
De certo, se era um dia especial merecia uma vestimenta especial. Estava quente, mas ela queria botas, achava que grandes momentos pediam botas. Sempre lembrava de sua mãe com galochas pretas nos enterros. Enterros eram momentos solenes, o que ela ia fazer era diametralmente oposto à morte, mas pedia uma veste solene, pedia uma boa apresentação.
Iria, então, de botas. Botas pretas e um vestido. Era difícil escolher qual, mas ela optou por um preto de corte simples. Toda mulher fica bem de preto, ela pensa, enquanto escolhe alguns acessórios. Havia lido em uma revista, dessas de moda, que brincos e colares grandes desviavam a atenção. Ela queria toda atenção hoje, então escolhe bijuterias baratas e pequenas. As botas eram grandes, o vestido era médio, os adereços eram pequenos. Ela, contudo, tinha uma revelação gigante a fazer.
Aquela hora da manhã já fazia um calor infernal, o dia prometia, prometia pegar fogo. Ela sabia que não seria fácil e que era importante escolher o batom certo. Sua boca deveria estar perfeita, dela sairiam palavras que iriam transformar sua vida. Não só sua vida, mas dos que estavam relacionados com o que ela ia falar. Um batom encarnado era o ideal. Chamava atenção para os lábios e ela queria isso. Se sentia bem pensando nisso, no movimento que seus lábios iriam fazer enquanto falava, pensava em cada músculo da face se movimentando, na quase dor que ia sentir enquanto o medo tentava paralisar sua ação.
Batom encarnado. Boa escolha, cor de vida, cor de sangue, cor forte. O perfume... Esse deveria ser forte também. Tinha que marcar, impregnar o ambiente. Não era qualquer cheiro que poderia marcar uma revelação como aquela.
Precisava ser um odor carregado, uma essência única e múltipla. Ela opta por uma mistura. Gostava de fazer isso. Achava que a vida não podia ser pacata e que os cheiros deviam ter movimento. Para ela, o movimento dos cheiros estava ligado as misturas que fazia. Não misturava os cheiros no corpo. A mistura acontecia em um recipiente e só depois ela colocava no corpo.
Naquele dia usou uma mistura de cheiros que lhe parecia feliz. Ela ia contar, ela ia abrir a boca, dessa vez ia falar. O cheiro dizia isso, o cheiro dava coragem. No espelho ela via a boca forte, pronta para vencer o medo, pronta para romper com todos os receios.
Ela sai do quarto, passa pela sala e vê as fotos em uma pequena estante, lembra do seu cabelo comprido e sente um aperto no peito, seus pés parecem flutuar, parece que vai faltar forças.
Mas, ela abre a porta e sai. Ganha a rua, afinal, ela tem que revelar, ela precisa falar, hoje ela conta...